quarta-feira, 27 de junho de 2018

De que barro você é feito?

 Breve reflexão sobre conformistas, artistas e ceramistas

O conformismo, em sua definição formal, corresponde ao conjunto de atitudes daqueles que, passivamente, cumprem os preceitos e aceitam as ideias e mentalidades vigentes em um determinado local e período de tempo. Enxergou sua própria imagem refletida no espelho ao ler a definição? Talvez não, mas posso assegurar que a este grupo pertence a maioria dos indivíduos que têm habitado as mais diversas civilizações ao longo do tempo.
Bernardo Bertolucci fez um grande filme sobre o tema, que nos permite pensar a respeito do assunto. Lançado em 1970, o Conformista trata de um professor de filosofia (Marcello Clerici, interpretado por Jean-Louis Tringant) que almeja se adequar à sociedade da sua época. O detalhe é que Marcello vive na Itália dos anos 1920 e sua adequação passa pelo conformismo aos ideais desse período, onde a "normalidade" era representada pela violência e perversidade do regime vigente - o fascismo. Mesmo sem convicção, mas movido pelo desejo de "normalidade", Marcello casa-se com uma jovem fútil ligada ao regime fascista e recebe a missão de assassinar seu antigo professor de filosofia, que atua como opositor do regime.

O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci

O que move os conformistas, capazes de agir contra suas convicções em busca dessa dita "normalidade" é uma questão intrigante... Reconheço nesse comportamento a busca pela aceitação da sociedade e um certo instinto de sobrevivência. Some-se a isso uma boa dose de manipulação e já temos ingredientes suficientes para obter um conformista capaz de se adequar a qualquer forma de pensamento vigente. E eles (eu deveria dizer nós, para ser mais preciso) serão (quase) sempre maioria!
Felizmente, o mundo não é feito só de conformistas. Há alguns indivíduos que tem o hábito de romper com a "normalidade" e por vezes gostam de bradar aos quatro ventos suas convicções transgressoras. Não é uma regra, mas particularmente na classe artística podemos nos fartar de exemplos desses sujeitos. Arnaldo Baptista, não por acaso também conhecido como Lóki, quando compôs a brilhante Balada do Louco, atestou para quem estivesse disposto a ouvi-lo "...eu juro que é melhor não ser o normal" e ainda "...louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz!".

Arnaldo Baptista (Lóki)

Mas foi Jorge Amado, exímio contador de histórias e criador de personagens memoráveis da literatura brasileira, que buscou discutir, ao seu modo, a diferenciação entre artistas, intelectuais, conformistas e revolucionários. Em seu romance São Jorge dos Ilhéus, publicado em 1944, o poeta Sérgio Moura explica para Joaquim, mecânico ligado ao Partido Comunista, porque os artistas e intelectuais vivem em torno de suas convicções, sem mergulhar de fato na luta que idealizam. Segundo ele, os intelectuais e artistas sonham um mundo diferente através da arte e de suas reflexões, mas ficam de fora dele, rodando em torno como perus. E por que? Porque não são feitos do mesmo barro que os conformistas e tampouco dos militantes que buscam ação. De acordo com ele, esse barro é uma espécie de lama, que agarra essas pessoas até os cabelos e os mantém presos: "Nós somos feitos de outro barro, diferente de vocês. O nosso barro é frágil, vira lama com facilidade... Ah! Com muita facilidade".

Jorge Amado

Em tempos onde voltamos a flertar tão abertamente com o fascismo, talvez essa reflexão sobre o tipo de barro que nos constitui, ainda que nada nova, seja necessária. Nesse sentido, indaguei há algum tempo um amigo ceramista, sobre as diferenças entre os barros que ele utilizava para fazer suas peças de cerâmica. Para minha surpresa, ele respondeu: "Não sei porque vocês se preocupam com isso. Barro é tudo igual". Será mesmo??

segunda-feira, 18 de junho de 2018

A Greve de Eisenstein e as greves segundo Guima.

 Às vésperas do centenário do clássico do cinema russo, Guima apresenta síntese contemporânea implacável do significado dos movimentos de greve nos dias atuais



Sergei Eisenstein foi um cineasta revolucionário, que mudou a história do cinema e influenciou grandes diretores como Orson Welles, Brian de Palma e Oliver Stone, dentre outros. Sua filmografia é relativamente curta - pouco mais de dez longas - para os nossos padrões de produção atuais, mas suas contribuições foram tão marcantes, que seu nome é sempre lembrado em qualquer lista a respeito dos maiores cineastas de todos os tempos.


Sergei Eisenstein

Seus filmes mais conhecidos são o Encouraçado Potemkin (1925) e Ivan, o Terrível (1944). O primeiro foi feito para celebrar o regime bolchevique, recém inaugurado na URSS. E o segundo foi realizado a pedido de Stálin, que era profundo admirador do czar. Sua obra, a exemplo da maior parte da produção soviética da época, é marcada por um profundo engajamento político.
Nesses dias, tive a oportunidade de assistir pela primeira vez o primeiro longa metragem da carreira de Eisenstein: A Greve, lançado em 1925. Se você não está familiarizado com cinema mudo, prepare-se para uma grata surpresa. Em geral, ao contrário do que se imagina, os filmes produzidos nessa época têm muita ação e não são nada difíceis de assistir. A Greve (trailer abaixo) é um belíssimo filme, que se baseia na trágica história de um operário de uma fundição, que se suicida após ser acusado de roubar um micrômetro da fábrica. O ocorrido serve de estopim para que os operários organizem a greve citada no título do filme.



É impossível assistir o filme e não refletir a respeito de quão atuais são as questões abordadas. Assim pensei, até me encontrar com o Guima, alguns dias depois de assistir o filme. Ele refletia sobre o episódio recente da greve dos caminhoneiros no Brasil e muito rapidamente sintetizou seu pensamento a respeito das greves, de uma maneira geral: "Esse negócio de fazer greve não dá em nada. Você pode ver: sempre que fazem uma greve, só serve para causar prejuízo!" e emendou "no começo parece uma boa, mas depois o pessoal começa a cortar os salários, ameaçam demitir os funcionários,... e tudo volta como era antes. Bobagem esse negócio de greve!"
Talvez eu ainda estivesse influenciado pelo filme do Eisenstein e após ouvir com perplexidade, argumentei: "mas é proibido por lei demitir funcionários que fazem greve, né!?" No que ele prontamente rebateu com um sorriso no canto da boca: "ahh... não demitem na hora, mas depois sempre arrumam um pretexto, uma crise que exige redução do quadro de funcionários e pronto! Esse negócio de greve não funciona".
Saí da conversa um tanto aturdido. Me lembrei do filme, das conquistas trabalhistas históricas obtidas por meio das greves, mas tudo me pareceu tão distante... O Guima, com suas doses cavalares de realidade seca e cortante, tinha razão mais uma vez: "Esse negócio de greve, não dá em nada".
A propósito, para quem não sabe, o Guima é o meu cabeleireiro. Ele tem tido cada vez menos trabalho nas visitas mensais que eu faço para ele e eu tenho aprendido cada vez mais a respeito desse mundo real.