segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O que ainda está por vir?

 O Jardim dos Finzi Contini e o Museu Nacional do Rio de Janeiro

   Comecei a semana atônito, como muitos brasileiros, ao receber a notícia de que na noite de domingo um incêndio de proporções avassaladoras atingiu aquele que talvez seja o museu nacional que abriga o maior acervo histórico, cultural e científico do país. As causas da tragédia ainda são desconhecidas, mas sabe-se, dentre outros aspectos noticiados na imprensa, que a dificuldade em controlar o incêndio para impedir que as chamas se alastrassem passou pela falta de água nos hidrantes (!!) do local. As últimas notícias informam ainda que os cerca de 20 milhões de itens armazenados no museu foram destruídos em praticamente sua totalidade. Descrever com palavras o tamanho dessa tragédia e o prejuízo humanitário que ela representa é algo que extrapola minhas habilidades narrativas. Nesse momento, muita gente se manifesta com muito mais propriedade a esse respeito e eu prefiro compartilhar apenas o sentimento de vergonha descrito pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves no seu post intitulado com uma pergunta desafiadora: "Como explicar ao futuro que deixamos o Museu Nacional virar cinza?" O texto citado pode ser conferido clicando aqui.
  O baque produzido por um acontecimento trágico dessa proporção seria, por si só, difícil de ser assimilado por qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade para compreender a importância histórica e  cultural de um museu desse porte. Entretanto, o que causa consternação no Brasil contemporâneo é a sucessão de catástrofes que tem nos assolado sucessivamente: um dia, é o principal museu do país que vira cinzas; no outro, o rompimento de uma barragem que deixa um rastro de destruição e morte; um pouco mais adiante, uma ocupação popular de 24 andares que desaba após um incêndio... Em meio (e por trás) desse cenário, desastres ainda mais relevantes são noticiados de forma corriqueira: os investimentos públicos do governo federal são congelados por um período de 20 anos; uma reforma trabalhista é aprovada praticamente sem discussões e em pouco tempo já traz consequências previsíveis para o aumento da desigualdade social no país, que atinge níveis alarmantes... A pergunta óbvia que qualquer cidadão sensato deve fazer depois de tantos atentados sucessivos (à nossa memória, cultura, meio-ambiente, saúde, educação, relações trabalhistas, etc.) é a seguinte: O que ainda está por vir?
   Esse sentimento de impotência perante o descaso observado no tratamento dos direitos básicos dos cidadãos de um país me trouxe à memória um dos grandes filmes do cinema italiano de todos os tempos - o clássico O Jardim dos Finzi Contini (1970). Dirigido por Vittorio de Sica, um dos mais sensíveis cineastas italianos e mais importantes ícones do neo-realismo, o longa retrata com sutileza a sucessão de acontecimentos em Ferrara, no período que antecede a II Guerra Mundial. Os Finzi Contini são judeus que pertencem à aristocracia local, mas que já não podem participar das partidas de tênis no clube da cidade pelas novas leis vigentes. Recebem, portanto, seus amigos no jardim da sua propriedade, onde há uma quadra de tênis e tudo parece caminhar bem dessa forma. Pouco tempo depois, são informados, pelas notícias publicadas no jornal, que os casamentos entre judeus e arianos estão proibidos e que aos judeus também não se permite mais que tenham empregados arianos em suas residências ou estabelecimentos comerciais. O cerco vai se fechando e a cada nova notícia recebida a tensão vai aumentando. Mas o grande mérito do filme consiste em representar o início de uma das maiores tragédias da história da humanidade como se o que estivesse por vir fosse algo natural, indigno de grandes preocupações. Em uma dada cena, o pai do protagonista (Lino Capolicchio) atesta, mesmo sendo judeu, que as restrições a eles impostas não devem ser vistas pelo filho de maneira tão negativa, visto que eles ainda tem direito à propriedade, dentre outras coisas...


O Jardim dos Finzi Contini (1970).

   Em uma das cenas mais emblemáticas do filme, a família de judeus está reunida na mesa para celebrar a Páscoa, entoando cânticos hebraicos e são interrompidos pelo toque do telefone. A desgraça pode estar sendo anunciada através da chamada telefônica, mas é preciso continuar vivendo... Guardadas as devidas proporções, silenciosamente eles fazem a pergunta que cada vez mais passa pela cabeça dos brasileiros: O que ainda está por vir?
   A comparação pode parecer exagerada se considerarmos os contextos históricos de cada caso, mas fico com sérias dúvidas quando gasto alguns minutos para ler os comentários publicados nos portais de notícias, a respeito do incêndio ocorrido no Museu Nacional. Transcrevo alguns aqui,  fruto de uma garimpagem de apenas 2 minutos:

"O passado não me representa, quero saber do futuro, histórias que pertecem ao passado não fazem diferença na vida de ninguém! Vamos viver o presente e lutar para um futuro sem essa bandidagem do legislativo e stf."


"Ninguém ligava pra essa M mesmo, queimou foi tarde demais!"


"O passado não mata a fome de ninguém! Temos que ter é comida na mesa, emprego para o povo, saúde, educação etc. e um país sem o bandido do Gilmar! Isso sim é o que conta de verdade!"


"O que tinha de tão importante nesse lugar? Por acaso a história da Seleção Canarinho? Alguma taça da copa se perdeu?"


"Que história, o quê! E esses estudantes sabem alguma coisa? Eles nem sabem quem era o presidente em 1990. E agora ficam ai posando de defensores de museu? Borrachada no lombo deles. O ideal é guardar em um depósito as velharias do museu, derrubar o palácio incendiado e construir prédios modernos na área."


"Irão gastar bilhões para reformar esse museu... E a população passando fome."


"Tanto dinheiro foi dado via lei Rouanet pra esses artistas de esquerda e o museu abandonado..."


   Essa combinação de ignorância e nacionalismo soa como um prato cheio para a manipulação política e já produziu os episódios mais degradantes da história da humanidade. Na cena final do Jardim dos Finzi Contini, quando os judeus são levados pela polícia fascista e segregados provisoriamente em uma escola local, a encantadora personagem Micol (interpretada por Dominique Sanda) se lamenta pelo ocorrido com o pai de Giorgio (Romolo Valli) e este a consola com a seguinte frase: "agradeça a Deus, porque ao menos eles nos deixaram juntos, nós de Ferrara". Espero, de verdade, que a gente tenha melhor sorte no Brasil e que possa agradecer por alcançar graças mais reconfortantes do que essa.


  

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